Já temos os braços todos picados.
Já reclamamos uns com os outros quando, muito amigavelmente, alguém nos bate naquele ombro que levou duas vacinas ainda hoje. Há um mês, fomos à consulta do viajante tomar duas / três vacinas (no meu caso e do João, foram logo três, porque a médica gostou mais de nós que do Ricardo e da Teresa V. e mandou-nos tomar uma de uma meningite qualquer - como veem percebo muito de vacinas).
Hoje, foram mais duas, que na altura estavam esgotadas. No meu caso foram novamente três, porque tive que tomar a do tétano, já estou na idade - sei que isto interessa muito a todos os leitores deste blogue, portanto decidi partilhar.
Estamos todos com os braços doridos (Inês, gente que já foi a Angola não conta, sim?). Mas essa dor, depois de ouvirmos a nossa mana Maria falar, pareceu-nos ridiculamente pequena. A Maria está em Angola em missão, e vive na casa onde vamos estar entre 28 de julho e 22 de agosto. Vive diariamente os problemas daquela população, tenta solucioná-los, na medida do possível, em conjunto com as outras irmãs.
Agora está cá em Portugal, de passagem, e segue para Madrid já amanhã, para o Capítulo Geral da congregação (se quiserem saber mais sobre o Capítulo Geral, vão ao Google ou escrevam num comentário - "falem do Capítulo Geral!" - e nós, obedientes, falamos).
Hoje, juntámo-nos à volta da mesa para partilhar. A Maria partilhou muita coisa connosco. Tanta, que nas expressões dos rostos de cada um estava estampado o nervoso miudinho. "Então é para isto que vamos", pensávamos em conjunto. De repente, as imagens de miséria, de crianças desnutridas, mal-formadas, gravidezes muito precoces, problemas com álcool, drogas, analfabetismo, tornaram-se a nossa futura realidade.
Naquelas horas, aquelas pessoas que estamos habituados a catalogar, com tom condescendente na voz, como "os meninos de África", ganharam nomes, histórias, famílias. E apercebemo-nos que, daqui a duas semanas (o contador agora está ali na coluna da direita só para aumentar o nervosismo), vamos olhá-las nos olhos. Vamos, com certeza, fazer o que podemos por elas, mas também vai ficar muito por fazer.
Falar daquela realidade faz crescer uma revolta inexplicável. As desigualdades entre a miséria das províncias e a Luanda milionária, a exibir a sua riqueza em grandes carros e edifícios. As questões políticas, das quais não se pode falar senão... ...
Uma população com baixa auto-estima, afundada em problemas de higiene, saúde, de acesso a alimentos, a água, a medicamentos. O whisky mais barato que a água, a cerveja ao preço da chuva. Os problemas com drogas, com ausência de educação.
"Que vamos lá fazer?", pensei eu, com o sentimento de impotência de quem sabe que, por muito esforço que façamos, não vamos resolver os verdadeiros problemas. Atenuar, talvez? Dar-lhes algumas ferramentas para pensarem por si mesmos?
Vamos, talvez, deixar a nossa marca. Deixar com eles o que sabemos, o que nos chegou dos anos que estudamos até aqui. Deixar-nos a nós, também, lá - os nossos valores, a nossa forma de ver as relações humanas, o respeito por nós próprios e pelos outros.
Se dermos tudo, algo há-de ficar. Eu acredito nisso, e tenho a certeza absoluta que eles também acreditam - tanto os seis que vão comigo, como o resto do grupo, que vai connosco em espírito.
Neste momento, os braços já não me doem. E a enfermeira até me disse que a vacina do tétano podia dar febre e tudo. Mas dói-me mais a alma, da porrada que levou hoje. Tomar consciência que a miséria dos países de Terceiro Mundo é real e tem nomes mexe cá dentro. Ainda mais quando percebemos que, daqui a pouco tempo, vamos estar no meio dela, a tentar fazer aquilo que o mundo todo devia fazer: olhar mais para o lado e menos para o umbigo.
Deus seja louvado pelos corações disponíveis e pelos olhos que se vão treinando para VER.
ResponderEliminarBoa missão.