sábado, 14 de julho de 2012

Processo de tomada de consciência - o início

Já temos os braços todos picados.

Já reclamamos uns com os outros quando, muito amigavelmente, alguém nos bate naquele ombro que levou duas vacinas ainda hoje. Há um mês, fomos à consulta do viajante tomar duas / três vacinas (no meu caso e do João, foram logo três, porque a médica gostou mais de nós que do Ricardo e da Teresa V. e mandou-nos tomar uma de uma meningite qualquer - como veem percebo muito de vacinas). 

Hoje, foram mais duas, que na altura estavam esgotadas. No meu caso foram novamente três, porque tive que tomar a do tétano, já estou na idade - sei que isto interessa muito a todos os leitores deste blogue, portanto decidi partilhar.

Estamos todos com os braços doridos (Inês, gente que já foi a Angola não conta, sim?). Mas essa dor, depois de ouvirmos a nossa mana Maria falar, pareceu-nos ridiculamente pequena. A Maria está em Angola em missão, e vive na casa onde vamos estar entre 28 de julho e 22 de agosto. Vive diariamente os problemas daquela população, tenta solucioná-los, na medida do possível, em conjunto com as outras irmãs. 

Agora está cá em Portugal, de passagem, e segue para Madrid já amanhã, para o Capítulo Geral da congregação (se quiserem saber mais sobre o Capítulo Geral, vão ao Google ou escrevam num comentário - "falem do Capítulo Geral!" - e nós, obedientes, falamos).

Hoje, juntámo-nos à volta da mesa para partilhar. A Maria partilhou muita coisa connosco. Tanta, que nas expressões dos rostos de cada um estava estampado o nervoso miudinho. "Então é para isto que vamos", pensávamos em conjunto. De repente, as imagens de miséria, de crianças desnutridas, mal-formadas, gravidezes muito precoces, problemas com álcool, drogas, analfabetismo, tornaram-se a nossa futura realidade.

Naquelas horas, aquelas pessoas que estamos habituados a catalogar, com tom condescendente na voz, como "os meninos de África", ganharam nomes, histórias, famílias. E apercebemo-nos que, daqui a duas semanas (o contador agora está ali na coluna da direita só para aumentar o nervosismo), vamos olhá-las nos olhos. Vamos, com certeza, fazer o que podemos por elas, mas também vai ficar muito por fazer.

Falar daquela realidade faz crescer uma revolta inexplicável. As desigualdades entre a miséria das províncias e a Luanda milionária, a exibir a sua riqueza em grandes carros e edifícios. As questões políticas, das quais não se pode falar senão... ...

Uma população com baixa auto-estima, afundada em problemas de higiene, saúde, de acesso a alimentos, a água, a medicamentos. O whisky mais barato que a água, a cerveja ao preço da chuva. Os problemas com drogas, com ausência de educação.

"Que vamos lá fazer?", pensei eu, com o sentimento de impotência de quem sabe que, por muito esforço que façamos, não vamos resolver os verdadeiros problemas. Atenuar, talvez? Dar-lhes algumas ferramentas para pensarem por si mesmos?

Vamos, talvez, deixar a nossa marca. Deixar com eles o que sabemos, o que nos chegou dos anos que estudamos até aqui. Deixar-nos a nós, também, lá - os nossos valores, a nossa forma de ver as relações humanas, o respeito por nós próprios e pelos outros.

Se dermos tudo, algo há-de ficar. Eu acredito nisso, e tenho a certeza absoluta que eles também acreditam - tanto os seis que vão comigo, como o resto do grupo, que vai connosco em espírito.

Neste momento, os braços já não me doem. E a enfermeira até me disse que a vacina do tétano podia dar febre e tudo. Mas dói-me mais a alma, da porrada que levou hoje. Tomar consciência que a miséria dos países de Terceiro Mundo é real e tem nomes mexe cá dentro. Ainda mais quando percebemos que, daqui a pouco tempo, vamos estar no meio dela, a tentar fazer aquilo que o mundo todo devia fazer: olhar mais para o lado e menos para o umbigo.

1 comentário:

  1. Deus seja louvado pelos corações disponíveis e pelos olhos que se vão treinando para VER.
    Boa missão.

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