sábado, 4 de agosto de 2012

O "postoum" - título carinhosamente dado pelo João a este (pequeno) texto


A nossa noção de “cedo” e “tarde” começa, aos poucos, a alterar-se profundamente. Levantarmo-nos às oito parece coisa de preguiçoso – um desperdício de tempo e de sol, que quase nos faz sentir culpados.
Hoje dividimo-nos em dois grupos, para conseguirmos chegar a mais lugares. Às 6h15, eu, o João, a Inês P. e a Teresa A. saímos para a paróquia de Nossa Senhora da Paz; enquanto isso, o Ricardo, a Ana e a Teresa V. tiveram direito a mais um tempinho de cama (preguiçosos!) e saíram às 8 horas para o Centro Paroquial de São Paulo.
À tarde, os papéis inverteram-se: o primeiro grupo foi conhecer o Centro de São Paulo, enquanto o segundo foi para Nossa Senhora da Paz.
Como só são passíveis de ser partilhadas as experiências que vivemos, hoje partilho com mais pormenor a perspetiva do grupo em que me inseri, tendo porém a certeza de que o dia foi muito enriquecedor para ambos.
Hoje foi, pelo menos para mim, o dia que mais mexeu cá dentro desde que chegamos. Foi o dia em que a realidade mais chocou, pelo simples facto de ser real. Depois da tarde de ontem, passada a ver a Luanda nova, esplendorosa, pudemos testemunhar a “outra” Luanda, aquela por onde os olhos passam e não param, por nos pôr demasiado em causa.
Mas começando pela manhã: tudo correu muito bem. Tal como nos outros dias, conhecemos crianças adoráveis de tão curiosas, sedentas de saber mais, de conhecer outras realidades.
Na paróquia de Nossa Senhora da Paz, depois da missa, a igreja transforma-se em salão de catequese. Na falta de espaços para tantas atividades, os espaços existentes são aproveitados ao máximo.
Juntamo-nos àquelas crianças num misto de catequese e aula sobre a cultura, o clima e as tradições portuguesas. À medida que o tempo passava, o grupo ia-se revezando: às crianças que no início nos rodeavam iam-se juntando outras, curiosas com o que se estava ali a passar e com a presença daqueles estranhos de pele clara. Outras saíam do grupo para se juntarem aos seus catequistas, à medida que eles iam chegando.

 
Bombardearam-nos de perguntas: “que é Jesus?”, “porque é que os Católicos dão tanta importância ao terço?”, “em Portugal há estações de comboio?”, “Há angolanos em Portugal?”.
A conversa foi-se construindo a partir das suas dúvidas, e resultou numa grande partilha de experiências.
Ainda nesta paróquia, tivemos a oportunidade de conhecer o Álvaro, um jovem muito dinâmico e dedicado aos projetos da sua paróquia. “Braço direito” do pároco e coordenador paroquial da juventude, tem o sonho de ver o Estádio do Dragão e de visitar Fátima em 2017, no centenário das aparições.
Depois de uma longa conversa com o Álvaro e de uma visita às (escassas) instalações da paróquia, depois de recebermos lindos desenhos oferecidos pelas crianças e de uma dúzia de fotografias tiradas, voltamos para almoçar com o restante grupo.
À tarde, procedemos às trocas: o meu grupo seguiu para o Centro de São Paulo, enquanto os outros seguiram para Nossa Senhora da Paz, não sem antes o chef Ricardo fazer um belo bolo para comemorar o aniversário da fundadora da nossa congregação, Maria Emilia Riquelme y Zayas. E com que belo aspeto ficou! Estamos todos ansiosos que chegue a festa de amanhã.
Apanhamos táxis para os nossos destinos.
Andar de carro em Luanda é um autêntico ato de fé. Particularmente quando falamos dos HIACE, umas carrinhas azuis bem amolgadas e degradadas a que alguns gostam de chamar “táxis”. Entram todos os que conseguirem caber nos bancos, ainda que os passageiros tenham que levar com a anca do passageiro do lado bem colada a si a viagem inteira.
Durante o caminho, o melhor é distrairmo-nos com a paisagem ou fecharmos os olhos, porque a estrada não é boa de se ver. Vale tudo: ultrapassar pela direita, pelo meio, pela berma direita, pela berma esquerda. Andar em contra-mão, se o caminho for mais curto. Atravessar na passadeira, ainda que estejamos em cima de uma mota. Entrar sem olhar numa rua principal, ainda que tenhamos um STOP bem visível à nossa frente. Não dá para descrever muito bem: só visto.
Mas há sempre uma mão ao nosso lado para agarrarmos, sempre que há uma travagem brusca. Valemo-nos uns aos outros, e felicitamo-nos mutuamente por termos conseguido sobreviver a mais uma viagem.
Findo o percurso, chegamos à Terra do Nunca: a terra que Nunca devia existir. À nossa frente, estava a Angola de que sempre ouvimos falar mas nunca imaginamos ver com os nossos próprios olhos.<
A linha do esgoto escavava buracos nas estradas de terra batida, pisadas por crianças de pés descalços. Da cabeça aos pés, estavam cobertas do pó das estradas. Tinham os olhares resignados. Alguns olhavam-nos espantados, enquanto outros saltavam por cima do esgoto como se de um pequeno riacho se tratasse. Levavam os irmãos pela mão e andavam em volta das banquinhas onde os pais vendiam roupa, fruta, puxos de cabelo, comida que parecia agradar muito às moscas que por ali andavam.
O lixo era presença permanente em todas as ruas por onde passávamos. O “limiar da pobreza”, esse conceito vago que vem nos livros de sociologia, estava ali, em frente aos nossos olhos. Vimos crianças a trepar pelos jipes que contrastavam com a sua própria vida. Vimos outras a brincar numa lixeira monumental, colada às barracas que lhes servem de casas.
Acho que o facto de já encararmos este povo como um povo irmão aumentou o nó no estômago ao percorrer aquelas ruas. Apesar de convivermos com a pobreza todos os dias, habituamo-nos ao espírito alegre das pessoas, ao sorriso sempre encaixado no rosto.
Ali, os sorrisos estavam como que adormecidos. Mal abríamos o sorriso a uma criança, o seu rosto transformava-se. Era certo que, enquanto nos visse, ia sorrir sempre e acenar sempre, à espera que respondêssemos ao aceno.
E percebemos que era tudo o que tínhamos para lhes dar. Além de sorrisos, estávamos de bolsos vazios.
Visitamos o grupo de catequese do Centro de S. Paulo, constituído por gente de todas as idades. Partilhamos experiências, cantamos, enriquecemo-nos mutuamente.
Pelo caminho para casa, viemos em silêncio, a perguntar-nos por que raio é que a nossa noção de “indispensável” tem de ser tão diferente da deles.
A ausência de energia em casa aumentou as questões: como havemos de sobreviver sem luz, sem filtro para a água, sem bomba de água para tomarmos banho e lavarmos a cara?
O espírito de “desenrascanço” prevaleceu, e montamos um banho público no pátio. Enchemos bacias com água do poço, e procedemos à lavagem de cabelo das meninas. Claro está que mal a Inês P. acabou de higienizar o cabelo a luz voltou, mas as outras decidiram passar pelo mesmo processo por solidariedade.
De cabelo lavadinho, completamos o banho no chuveiro e juntamo-nos à mesa, a celebrar a nossa vida privilegiada e a oportunidade de nos darmos conta dela.

PS: Hoje nasceu uma nova Vida. E vou-me aproveitar do facto de hoje o blogue estar a meu cargo para agradecer por ela. Um grande beijinho ao meu novo primo Rodrigo, à grande Tia Gi e a toda a família! Encham-no de beijos por mim! :)
PS2: desculpem o testamento, é mais forte que eu.

9 comentários:

  1. Olá meninos!
    Que bom ter falado com os meus filhotes ao telefone e saber que estão bem!Parecia que estavam ali ao lado.
    Cada dia que passa vocês tẽm mais que contar.Que bonito e emocionante é de ler estes vossos textos tão completos que quase nos fazem sentir presentes nas vossas vidas e nas vossas experiências de missão.
    Ni, a tua foto no facebook foi um sucesso...
    Uma boa semana e beijinhos para todos.

    O pai Ascensão manda também muitos beijinhos.Ele também está sempre ancioso por vir ver se há notícias novas.Até durante o dia ele vai espreitar...que eu sei!

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  2. Bom dia!
    Acabo de ver o vosso dia e digo: que grande filme! Consegui seguir-vos e estar presente nessas imagens tão bem relatadas, como se de um filme se tratasse. Pois... a questão é que é verdade, é realidade, existe mesmo. Imaginar-vos a viver essas verdades que fazem doer não nos deixa sossegados (confesso), mas temos a certeza que vale a pena e que há muita riqueza a ser partilhada.

    Inês: o nosso "Menino Jesus" é um fofo, não é?
    Muitos beijinhos para todos
    Fiquem bem
    Dadinha e Nuno

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  3. Estou outra vez de lágrima no olho... Deus vos abençoe meus queridos. Não há palavras.

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  4. Madrinha da Inês Pintalhão5 de agosto de 2012 às 18:37

    Só hoje é que fui ao blogue, porque não tenho estado por cá. Estive a ler o vosso dia-a-dia em Angola e fiquei impressionada com tanta pobreza, mas vocês estão a trabalhar contra isso e a lançar uma semente de esperança. Estou comovida com o vosso carinho e dedicação a essas crianças que nada têm. E sinto-me orgulhosa por ter, no meio desse grupo, a minha querida afilhada, Inês Pintalhão.
    Bem hajam.
    Beijinhos e abraços para todos.
    Aurélia e Zé Manel

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  5. Com uns filhos como os nossos de que precisamos mais?
    Aguentar as saudades até ao seu regresso.

    Bjs para todos do pai da Inês.
    Para ti Inês um especial do Papi.

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  6. Fico feliz por sentir que está tudo a correr como tínhamos juntos sonhado: uma experiência completa e marcante!:) Gostei de ler as vossas descrições! Cheira-me que ainda vai nascer um livro!:)
    Por aqui está tudo bem! Alguns regressam ao trabalho já esta semana (amanhã o Armando e quarta-feira eu!) outros continuam as suas férias!
    Desejo-vos tudo de bom! Enviem o meu abraço fraterno a todos aqueles que por aí encontrarem! Não se esqueçam de nós por cá!!!:)
    beijinhos
    Paula

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  7. Pois é Inês, vocês estavam de bolsos vazios mas de coração cheio, cumprindo por isso a vossa missão. Mas nessa terra de Deus, alguns têm os bolsos muito, muito cheios, mas vazios os corações e fechados os olhos. O homem tem tanto de inteligente e de bom como de mau, egoísta, soberbo e mesquinho. É pena, muita pena...
    Té recebemos o nº fixo para o qual ligar, amanha à noite vamos tentar falar com vocês. Hoje não estava-mos em casa. É que continuamos sem saber se lês o que escrevemos. Nunca respondes.
    Beijinhos para todos e para a irmã Alice.

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  8. Este murro no estômago deve ter sido bem forte... A começar pela parte de "A nossa noção de “cedo” e “tarde” começa, aos poucos, a alterar-se profundamente. Levantarmo-nos às oito parece coisa de preguiçoso – um desperdício de tempo e de sol, que quase nos faz sentir culpados"... E a terminar em toda a descrição que fizeram da vossa tarde.
    Mãos à obra missionários :)

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