A nossa noção de “cedo” e “tarde”
começa, aos poucos, a alterar-se profundamente. Levantarmo-nos às oito parece
coisa de preguiçoso – um desperdício de tempo e de sol, que quase nos faz
sentir culpados.
Hoje dividimo-nos em dois grupos,
para conseguirmos chegar a mais lugares. Às 6h15, eu, o João, a Inês P. e a
Teresa A. saímos para a paróquia de Nossa Senhora da Paz; enquanto isso, o
Ricardo, a Ana e a Teresa V. tiveram direito a mais um tempinho de cama
(preguiçosos!) e saíram às 8 horas para o Centro Paroquial de São Paulo.
À tarde, os papéis inverteram-se:
o primeiro grupo foi conhecer o Centro de São Paulo, enquanto o segundo foi
para Nossa Senhora da Paz.
Como só são passíveis de ser
partilhadas as experiências que vivemos, hoje partilho com mais pormenor a
perspetiva do grupo em que me inseri, tendo porém a certeza de que o dia foi
muito enriquecedor para ambos.
Hoje foi, pelo menos para mim, o dia
que mais mexeu cá dentro desde que chegamos. Foi o dia em que a realidade mais
chocou, pelo simples facto de ser real. Depois da tarde de ontem, passada a ver
a Luanda nova, esplendorosa, pudemos testemunhar a “outra” Luanda, aquela por
onde os olhos passam e não param, por nos pôr demasiado em causa.
Mas começando pela manhã: tudo
correu muito bem. Tal como nos outros dias, conhecemos crianças adoráveis de
tão curiosas, sedentas de saber mais, de conhecer outras realidades.
Na paróquia de Nossa Senhora da
Paz, depois da missa, a igreja transforma-se em salão de catequese. Na falta de
espaços para tantas atividades, os espaços existentes são aproveitados ao
máximo.
Juntamo-nos àquelas crianças num
misto de catequese e aula sobre a cultura, o clima e as tradições portuguesas.
À medida que o tempo passava, o grupo ia-se revezando: às crianças que no
início nos rodeavam iam-se juntando outras, curiosas com o que se estava ali a
passar e com a presença daqueles estranhos de pele clara. Outras saíam do grupo
para se juntarem aos seus catequistas, à medida que eles iam chegando.
Bombardearam-nos de perguntas: “que
é Jesus?”, “porque é que os Católicos dão tanta importância ao terço?”, “em
Portugal há estações de comboio?”, “Há angolanos em Portugal?”.
A conversa foi-se construindo a
partir das suas dúvidas, e resultou numa grande partilha de experiências.
Ainda nesta paróquia, tivemos a
oportunidade de conhecer o Álvaro, um jovem muito dinâmico e dedicado aos
projetos da sua paróquia. “Braço direito” do pároco e coordenador paroquial da
juventude, tem o sonho de ver o Estádio do Dragão e de visitar Fátima em 2017,
no centenário das aparições.
Depois de uma longa conversa com
o Álvaro e de uma visita às (escassas) instalações da paróquia, depois de
recebermos lindos desenhos oferecidos pelas crianças e de uma dúzia de
fotografias tiradas, voltamos para almoçar com o restante grupo.
À tarde, procedemos às trocas: o
meu grupo seguiu para o Centro de São Paulo, enquanto os outros seguiram para
Nossa Senhora da Paz, não sem antes o chef
Ricardo fazer um belo bolo para comemorar o aniversário da fundadora da nossa
congregação, Maria Emilia Riquelme y Zayas. E com que belo aspeto ficou!
Estamos todos ansiosos que chegue a festa de amanhã.
Apanhamos táxis para os nossos
destinos.
Andar de carro em Luanda é um
autêntico ato de fé. Particularmente
quando falamos dos HIACE, umas carrinhas azuis bem amolgadas e degradadas a que
alguns gostam de chamar “táxis”. Entram todos os que conseguirem caber nos
bancos, ainda que os passageiros tenham que levar com a anca do passageiro do
lado bem colada a si a viagem inteira.
Durante o caminho, o melhor é
distrairmo-nos com a paisagem ou fecharmos os olhos, porque a estrada não é boa
de se ver. Vale tudo: ultrapassar pela direita, pelo meio, pela berma direita,
pela berma esquerda. Andar em contra-mão, se o caminho for mais curto.
Atravessar na passadeira, ainda que estejamos em cima de uma mota. Entrar sem
olhar numa rua principal, ainda que tenhamos um STOP bem visível à nossa
frente. Não dá para descrever muito bem: só visto.
Mas há sempre uma mão ao nosso
lado para agarrarmos, sempre que há uma travagem brusca. Valemo-nos uns aos
outros, e felicitamo-nos mutuamente por termos conseguido sobreviver a mais uma
viagem.
Findo o percurso, chegamos à
Terra do Nunca: a terra que Nunca devia existir. À nossa frente, estava a
Angola de que sempre ouvimos falar mas nunca imaginamos ver com os nossos
próprios olhos.<
A linha do esgoto escavava
buracos nas estradas de terra batida, pisadas por crianças de pés descalços. Da
cabeça aos pés, estavam cobertas do pó das estradas. Tinham os olhares
resignados. Alguns olhavam-nos espantados, enquanto outros saltavam por cima do
esgoto como se de um pequeno riacho se tratasse. Levavam os irmãos pela mão e
andavam em volta das banquinhas onde os pais vendiam roupa, fruta, puxos de
cabelo, comida que parecia agradar muito às moscas que por ali andavam.
O lixo era presença permanente em
todas as ruas por onde passávamos. O “limiar da pobreza”, esse conceito vago
que vem nos livros de sociologia, estava ali, em frente aos nossos olhos. Vimos
crianças a trepar pelos jipes que contrastavam com a sua própria vida. Vimos
outras a brincar numa lixeira monumental, colada às barracas que lhes servem de
casas.
Acho que o facto de já encararmos
este povo como um povo irmão aumentou o nó no estômago ao percorrer aquelas
ruas. Apesar de convivermos com a pobreza todos os dias, habituamo-nos ao
espírito alegre das pessoas, ao sorriso sempre encaixado no rosto.
Ali, os sorrisos estavam como que
adormecidos. Mal abríamos o sorriso a uma criança, o seu rosto transformava-se.
Era certo que, enquanto nos visse, ia sorrir sempre e acenar sempre, à espera
que respondêssemos ao aceno.
E percebemos que era tudo o que
tínhamos para lhes dar. Além de sorrisos, estávamos de bolsos vazios.
Visitamos o grupo de catequese do
Centro de S. Paulo, constituído por gente de todas as idades. Partilhamos
experiências, cantamos, enriquecemo-nos mutuamente.
Pelo caminho para casa, viemos em
silêncio, a perguntar-nos por que raio é que a nossa noção de “indispensável”
tem de ser tão diferente da deles.
A ausência de energia em casa
aumentou as questões: como havemos de sobreviver sem luz, sem filtro para a
água, sem bomba de água para tomarmos banho e lavarmos a cara?
O espírito de “desenrascanço” prevaleceu, e montamos um
banho público no pátio. Enchemos bacias com água do poço, e procedemos à
lavagem de cabelo das meninas. Claro está que mal a Inês P. acabou de
higienizar o cabelo a luz voltou, mas as outras decidiram passar pelo mesmo
processo por solidariedade.
De cabelo lavadinho, completamos o banho no chuveiro e
juntamo-nos à mesa, a celebrar a nossa vida privilegiada e a oportunidade de
nos darmos conta dela.
PS: Hoje nasceu uma nova Vida. E vou-me aproveitar do facto de hoje o blogue estar a meu cargo para agradecer por ela. Um grande beijinho ao meu novo primo Rodrigo, à grande Tia Gi e a toda a família! Encham-no de beijos por mim! :)
PS2: desculpem o testamento, é mais forte que eu.